Mercado imobiliário
27 Junho 2025
Quão diferente é 28,7% de 6,3%?
Como uma opção que ninguém se preocupou em explicar pode contribuir para a disseminação de afirmações falsas.
Como a falta de pensamento crítico condiciona a opinião pública, mas também a perceção de especialistas, jornalistas e decisores políticos.
E como tudo isto pode enfraquecer a resposta a um dos maiores problemas deste país: a crise de acesso à habitação.

Por Celt Studio.
I – O Instituto Nacional de Estatística: o que é e o que nos diz
"Sem dados, és apenas mais uma pessoa com uma opinião."
W. Edwards Deming
O que é INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (INE) e qual a sua função?
Segundo o diretório "Legislação" do site do INE, a sua lei orgânica estabelece que:
“O INE, IP é um instituto público de regime especial, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa que tem por missão produzir e divulgar de forma eficaz, eficiente e isenta, informação estatística oficial de qualidade, relevante para toda a Sociedade.”.
Como é que o INE nos ajuda a saber mais sobre os preços das casas?
Entre outros trabalhos, o INE produz numa base trimestral, aqueles que – para muitos (eu incluído) – são os dois relatórios mais completos sobre o mercado residencial em Portugal: o Índice de Preços da Habitação, e as Estatísticas de Preços da Habitação ao Nível Local.
Índice de Preços da Habitação
O Índice de Preços da Habitação diz-nos exatamente quantas transações de habitações ocorreram, e dá-nos conta do seu valor total expresso em euros, em Portugal e em cada uma das regiões NUTS II.
É gerado um índice de preços (o atual tem a sua base 100 em 2015) através do qual é possível analisar a evolução dos preços, nomeadamente, através de variações trimestrais e homólogas, que estabelecem comparações com os períodos 3 ou 12 meses anteriores ao momento a que se reporta o relatório.
Esta explicação da Eurostat ajuda a entender melhor o funcionamento dos índices: "Um índice apresenta a evolução de um número ao longo do tempo. Não é expresso em toneladas, euros ou qualquer outra unidade habitual; apenas mostra a alteração de valor entre um momento e outro. Para simplificar, o valor de referência, que pode dizer respeito, por exemplo, a um determinado ano (ano de base), é geralmente fixado em 100. Um índice de valor 110 significa um aumento de 10% em relação ao valor de referência."
Por exemplo, o índice de preços da habitação do 1º trimestre de 2025 é de 247,05. Simplificando, esta variação de praticamente 150% sugere que uma casa vendida por 100.000€ em 2015 – considerando a trajetória de preços de todas as habitações transacionadas em território nacional entre estas duas datas – poderia custar cerca de 247.000€ no 1º trimestre de 2025.
Esta informação dá-nos uma imagem muito nítida da evolução dos preços dos imóveis residenciais em Portugal. Por outro lado, diz muito pouco sobre o valor de mercado das casas na sua rua. Ou seja, para tentar estimar o valor de mercado de uma casa em Matosinhos, não faz sentido dar muita relevância à evolução dos preços em Oeiras ou Angra do Heroísmo.
Portugal é usualmente considerado um país de pequenas dimensões, mas estende-se por mais de 92.000 km2, 18 distritos, 2 regiões autónomas, 308 municípios, 3.092 freguesias, e uma assinalável diversidade territorial.
Quando no dia 21 de Março leu na imprensa inteira que os “Preços da habitação aumentam 9,1% em 2024” (entre muitos outros, esta foi – literalmente – a manchete de RTP, Diário de Notícias, TVI, Lusa, CNN, Jornal de Notícias e Sábado), essa não era mais que uma citação simplificada da primeira frase do relatório Índice de Preços da Habitação publicado nesse mesmo dia (que se reportava ao 4º trimestre de 2024), e que começava assim:
"Em 2024, o Índice de Preços da Habitação (IPHab) aumentou 9,1%, (...)".
E quando, no passado dia 23 de Junho, se podia ler nos mais variados meios, RTP (televisão) "Preços da habitação disparam 16,3% no 1.º trimestre", na Renascença (rádio) "Preços da habitação com aumento recorde de 16,3% nos primeiros três meses do ano", no Observador (publicação generalista) "Preços das casas deram "salto" recorde 16,3% nos primeiros três meses do ano", Diário Imobiliário (publicação especializada) "Preços da habitação disparam 16,3% no 1.º trimestre - INE"; estes artigos não eram mais que resumos do relatório Índice de Preços da Habitação relativo ao 1º trimestre de 2025 (ou resumos do resumo da Agência Lusa), publicados algumas horas depois da divulgação do relatório do INE, e que começava assim:
Uma breve nota sobre as quatro manchetes que acabei de referir: todos elas parecem sugerir que houve uma variação trimestral de 16,3% nos preços, quando esse valor – como é claro pela redação do INE – diz respeito à evolução homóloga, face ao 1º trimestre de 2024.
Estatísticas de Preços da Habitação ao Nível Local
As Estatísticas de Preços da Habitação ao Nível Local são publicadas cerca de um mês depois do Índice de Preços da Habitação, e dão-nos uma informação detalhada pelos 308 municípios em território nacional, as 24 freguesias da cidade de Lisboa, e as 7 freguesias da cidade do Porto.
Isto é, o INE calcula a mediana do valor/m2 de todas as casas vendidas nestas divisões administrativas.
Sendo que este preço/m2 resulta da divisão do valor da transação (em euros) pela área bruta privativa da habitação (em m2).
Quando no passado dia 23 de Abril leu, viu e escutou “Preço das casas aumentou 15,5% no último trimestre de 2024” (Jornal de Negócios), Preços da habitação subiram 10,3% em 2024” (RTP), “Preços das casas aceleram em 19 dos 24 maiores municípios” (ECO) “ou “Venda de casas em Portugal sobe 34%” (Idealista) [mencionei 4 exemplos, mas acho que podia ter indicado 40], estava a consumir a informação que todos os media cujo título lhe possa ocorrer, retiraram da edição das Estatísticas de Preços da Habitação ao Nível Local que o INE havia publicado nessa mesma manhã.
Como é que o INE tem acesso a todas as transações?
Inicialmente, o Índice de Preços da Habitação não era produzido a partir dos valores reais de transação, mas com base em avaliações bancárias (de resto, o INE continua a dedicar um relatório trimestral a estes documentos: o Inquérito à Avaliação Bancária na Habitação).
Mas em 2012, a necessidade de ir ao encontro da regulamentação da União Europeia, a redução do número de transações com recurso a crédito (recordo que a intervenção da Troika em Portugal aconteceu entre 2011 e 2014), e o facto de as avaliações não corresponderem necessariamente ao valor real de transação, terá motivado "um processo de diálogo com a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) no sentido de ajustar os termos de entendimento de partilha de informação fiscal sobre transações e avaliações de imóveis", que "culminou na celebração de uma segunda adenda ao Protocolo de Colaboração no segundo semestre de 2012".
Qual é o contributo da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para estes relatórios do INE?
Os documentos metodológicos publicados pelo INE explicam que é a informação administrativa fiscal da AT, que permite àquele instituto público quantificar o número e o valor das casas vendidas.
O INE expressa o preço das casas em cada região administrativa ou secção estatística através da mediana (uma medida de tendência central) do valor por metro quadrado. Ou seja, a mediana do quociente entre o preço de uma habitação expresso em euros, e a sua área bruta privativa expressa em metros quadrados.
O valor/m2 acaba por ser um indicador standard que permite, com algumas reservas – por exemplo, nem a definição de área bruta privativa é universal, nem todos os países privilegiam esta grandeza – confrontar preços de imóveis em contextos (dimensão, localização, etc.) distintos.
Sendo que a AT tem acesso aos dois valores que o compõem:
- Preço de todas as casas vendidas
As transações imobiliárias originam a cobrança de Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT) e do Imposto do Selo, ambos aplicáveis sobre o valor de transação*, motivo pelo qual a AT tem necessariamente conhecimento dos valores de transação.
* ou sobre o valor patrimonial se, porventura, este for superior ao da transação (algo muito pouco provável no atual contexto de preços), sendo que eventuais isenções do pagamento destes impostos devem ser asseguradas junto da AT;
- Área bruta privativa de todas as casas vendidas
É na Caderneta Predial Urbana (um dos documentos obrigatórios do imóvel, emitido pela AT), que consta a área bruta privativa dos imóveis. Poder-se-á dizer que esta grandeza é, muito provavelmente, a que mais se aproxima da noção de “área oficial” dos imóveis residenciais em Portugal.
A área bruta privativa é a grandeza a que o INE e o Confidencial Imobiliário (o mais conhecido banco de dados sobre o segmento residencial) consideram quando se referem à “área” de uma habitação transacionada. É também a área bruta privativa que é usualmente considerada nas avaliações certificadas, como é o caso daquelas que são levadas a cabo por peritos contratados pelos bancos, para estimar um valor para o ativo que estes se propõem a financiar, num cenário de crédito a habitação.
Em resumo, a fiabilidade e o detalhe da informação estatística sobre o mercado habitacional em Portugal assentam, entre outras coisas, nesta colaboração entre a AT e o INE.

Por Vitor Miranda.
II – Aparentemente, em Portugal, o número de estrangeiros não é o critério relevante para estimar a procura estrangeira
"Tortura os dados e eles confessarão qualquer coisa."
Ronald Coase
Mas afinal, o que está em causa?
O ritmo da evolução dos preços das casas em Portugal colocou a habitação no centro da atenção mediática e do debate político.
É por isso compreensível que o INE tente alargar o leque de informação que os seus relatórios compreendem.
E foi isso que aconteceu há 3 anos, em Março e Abril de 2022, quando foram publicados, respetivamente, o Índice de Preços da Habitação e as Estatísticas de Preços da Habitação ao Nível Local referentes ao 4º trimestre de 2021.
Nestes relatórios foram adicionadas notas introdutórias que mencionam uma “alteração ao protocolo de colaboração entre o INE e a Autoridade Tributária e Aduaneira que passou a incluir o envio de novas variáveis ao INE” e cuja informação possibilita, entre outros aspetos:
“i) conhecer o setor institucional dos intervenientes envolvidos nas transações, permitindo nomeadamente separar as aquisições feitas por pessoas singulares das feitas por pessoas coletivas;
ii) identificar as aquisições por parte de adquirentes com domicílio fiscal fora de Portugal;”.
Para total clarificação, as “Notas Metodológicas” de ambos os relatórios definem domicílio fiscal da seguinte forma:
- “Local da residência habitual, para as pessoas singulares”;
- “Local da sede ou direção efetiva ou, na falta destas, local do seu estabelecimento estável em Portugal para as pessoas coletivas”.
Porque é este momento tão importante?
O INE não justifica, nos relatórios, a razão para incluir esta nova informação.
Mas, aparentemente, o único motivo plausível para que o INE encontre pertinência na publicação detalhada do número e volume de “aquisições por parte de adquirentes com domicílio fiscal fora de Portugal”, será a quantificação da procura estrangeira e a estimação do seu impacto no mercado residencial.
Será a residência habitual do comprador o melhor critério para estimar a procura estrangeira?
Com todo o respeito pelo INE, parece evidente que é a nacionalidade – por se tratar da condição jurídica de um cidadão, independentemente de ter sido adquirida por nascimento ou naturalização – a característica que define a categorização de um cidadão como nacional ou estrangeiro.
Admiti desde logo que o INE não tivesse acesso à variável nacionalidade. Ou que, como em 2021 quase 15% das casas vendidas no país foram adquiridas por pessoas coletivas, que em 2022 se preferisse adotar um critério válido simultaneamente para pessoas singulares e pessoas colectivas.
Ou que, no limite, houvesse indicações para evitar produzir estudos que pudessem ser facilmente instrumentalizados para sugestionar interpretações de natureza xenófoba (ainda que, pessoalmente – mesmo face a uma preocupação legítima e meritória – tenha muitas reservas quanto a este tipo de interferência política em decisões de natureza científica).
Escrevi ao INE a colocar algumas questões.
Partilho dois excertos da resposta que recebi:
- “A variável ‘nacionalidade’ não se encontra disponível na informação disponibilizada pela AT”.
Ou seja, a AT não inclui a variável nacionalidade na informação que disponibiliza ao INE.
- “Importa, no entanto, esclarecer que, em termos de quantificação da procura estrangeira o critério relevante deve ser efetivamente o domicílio fiscal e não a naturalidade ou nacionalidade, pois estas últimas não dão qualquer indicação sobre o país em que o adquirente reside e onde terá, presumivelmente, obtido os rendimentos que lhe permitem posteriormente adquirir uma habitação em Portugal.”
Segundo o INE, a variável nacionalidade não deve ser “o critério relevante” para quantificar a procura estrangeira.
O que é particularmente surpreendente, considerando que a definição de “estrangeiro” segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa é a seguinte:
– “Que ou quem tem nacionalidade diferente daquela do país onde está”.
É igualmente surpreendente que o INE pareça sugerir que, por não ter indicações sobre o país em que alguém reside ou terá auferido os rendimentos que lhe permitiram comprar uma casa em Portugal, as aquisições levadas a cabo por essas pessoas – mesmo que estejamos a falar de milhares de transações – não justifiquem uma categorização detalhada.
Tanto quanto pude entender pela leitura dos documentos metodológicos do Índice de Preços da Habitação e das Estatísticas de Preços da Habitação ao Nível Local, a função destes relatórios não é rastrear a origem do dinheiro que permite a compra de uma casa em Portugal, mas entender a dinâmica do mercado habitacional e a sua evolução de preços.
Conclusão
O instituto público cuja missão é “produzir e divulgar de forma eficaz, eficiente e isenta, informação estatística oficial de qualidade, relevante para toda a Sociedade”, considera que o número de cidadãos estrangeiros a adquirir habitação em Portugal não deve ser o critério relevante para quantificar a procura estrangeira.
Não sei o que pensará o leitor, a mim parece-me algo bizarro.
Trabalhadores remotos, salários estrangeiros
Ainda sobre a nacionalidade não dar “(...) qualquer indicação sobre o país em que o adquirente reside e onde terá, presumivelmente, obtido os rendimentos que lhe permitem posteriormente adquirir uma habitação em Portugal (...)”, ocorre-me partilhar o seguinte:
Desde a pandemia, com a generalização do trabalho remoto, estima-se ("perceciona-se" talvez seja mais rigoroso) que tenha aumentado significativamente o número de pessoas cujos rendimentos são auferidos no estrangeiro (presumivelmente, em países com ordenados superiores aos praticados em Portugal), mas que vivem parte ou totalidade do seu tempo em território português.
Beneficiando, precisamente, da discrepância entre o custo de vida em Portugal e os rendimentos auferidos no seu país de origem.

Por Sergey.
III – O que disse o INE, há 3 anos, sobre a procura estrangeira?
"O problema com a comunicação é a ilusão de que ela aconteceu."
George Bernard Shaw
Índice de Preços da Habitação
O relatório de 23 de Março de 2022 compreende duas frases que sintetizam grande parte da informação adicional obtida com a atualização do protocolo de colaboração entre INE e AT.
1) “Em 2021, as transações de habitações cujo comprador pertencia ao setor institucional das Famílias, representaram 85,6% e 85,7%, respetivamente, em número e valor total das transações registadas.”
Ou seja, naquele ano, quase 15% do número total de casas vendidas em Portugal (e do valor total investido na sua aquisição) foram compradas por pessoas coletivas: empresas não financeiras, sociedades financeiras, administrações públicas ou instituições sem fins lucrativos ao serviço das famílias.
2) “No total de vendas de alojamentos contabilizadas em 2021, 94,6% apresentaram comprador com o domicílio fiscal em Território Nacional (156 759 transações), seguindo-se a União Europeia com 2,8% (4 557) e os Restantes Países com 2,6% (4 366).”
Isto significa que, em 2021, pouco mais de 5% das compras de habitações em Portugal foram levadas a cabo por pessoas com domicílio fiscal fora de Portugal.
Este relatório disponibilizava também um ficheiro Excel que compreende uma tabela (reproduzida abaixo) que apresenta – do 1º trimestre de 2019 ao 4º trimestre de 2021 – o peso, em número e valor, das transações de habitações, geradas por compradores com domicílio fiscal em Portugal, em outro país da UE ou em país terceiro.

Com base nos dados desta tabela foi possível calcular que, de 2019 a 2021:
1) Os compradores com domicílio fiscal fora de Portugal representavam, em média, 5,4% das aquisições de habitação durante esse período;
2) As aquisições de casas por parte de compradores com domicílio fiscal fora de Portugal representavam 10,0% do volume total de transações;
3) O preço médio das transações levadas a cabo por compradores com domicílio fiscal em país estrangeiro (293.826€) representava perto do dobro do valor médio das transações levadas a cabo por compradores com domicílio fiscal em Portugal (149.644€);
4) O preço médio das transações levadas a cabo por compradores com domicílio fiscal em (outro) país da União Europeia foi de 244.703€, e de 374.383€ para compradores com domicílio fiscal nos demais países estrangeiros [é possível que os Golden Visa ajudem a explicar, em parte, este acréscimo de valor].
Estatísticas de Preços ao Nível da Habitação ao Nível Local
Este era o destaque no topo da 1ª página do relatório de 21 de Abril de 2022. O que aliás, é consistente com aquilo que tínhamos acabado de confirmar em relação ao resto do país:
Dito da forma simples: a discrepância entre os valores de aquisição de residentes e não residentes, é ainda maior na Área Metropolitana de Lisboa (AML) que no resto do país.
Ou seja, o que equivalia a “quase o dobro” a nível nacional, parecia corresponder “mais do dobro” na AML. E digo “parecia” porque, em rigor, estou a comparar uma média aritmética simples (calculada através de dados do INE), com um valor mediano que aquele instituto público não chegou a especificar.
Em todo o caso, parece amplamente consensual que Lisboa e a sua área metropolitana (à semelhança de tantos outros centros urbanos espalhados pelo mundo) têm mais facilidade em atrair capital humano e financeiro do que a esmagadora maioria do restante território nacional.
Em seguida demonstrar-se-á:
1) Por que razão estes números parecem insuficientes para estimar o impacto da procura estrangeira;
2) De que forma estas estatísticas são frequentemente deturpadas por especialistas e jornalistas;
3) Como essas distorções podem comprometer a qualidade da informação que chega ao grande público.

Por Skórzewiak.
IV – Alguma coisa não bate certo
"As estatísticas são como biquínis. O que revelam é sugestivo, mas o que escondem é essencial."
Aaron Levenstein
O que me levou a questionar o INE?
O telefone de um consultor imobiliário com alguns anos de experiência toca com frequência. Quase todos os dias recebo contactos de pessoas que querem comprar ou arrendar casa na Grande Lisboa. Ou de agentes imobiliários em quem alguém depositou a responsabilidade de representar essa intenção. E muitas destas pessoas são estrangeiras.
Mesmo reconhecendo que o facto de trabalhar em Lisboa pudesse amplificar a minha perceção, ao longo destes três anos nunca acreditei que os números publicados pelo INE representassem fidedignamente a procura estrangeira em Portugal.
E acredito também que esta opção foi aceite sem o devido escrutínio ou sentido crítico por parte de jornalistas e especialistas, contribuindo para a consolidação de uma ideia falsa: a de que o número de casas compradas por cidadãos estrangeiros representaria apenas um valor entre os 5% e os 7% do número de aquisições de casas em Portugal.
Comecemos pelo senso-comum
Sem prejuízo de um cidadão estrangeiro poder comprar uma casa da primeira vez que coloca o pé no país (ou até fazê-lo sem cá se deslocar), e mudar a sua residência após a compra, ou fazer uma aquisição de imóvel para habitação secundária ou arrendamento (que não implica a mudança do seu domicílio fiscal para Portugal), é muito provável – aqui ou em qualquer parte do mundo – que alguém que se desloque para outra geografia comece por arrendar uma casa. E só depois, já conhecendo bem uma dada região, cidade ou bairro, opte por decidir onde se quer estabelecer definitivamente.
Ou seja, que no momento da aquisição da casa, aquele cidadão estrangeiro já seja considerado residente em Portugal.
E continuemos com números...
Há (pelo menos) um exemplo concreto que sugere que a opção do INE em privilegiar a variável domicílio fiscal para estimar o impacto da procura estrangeira no mercado residencial, parece excluir da contabilização uma parte muito significativa das aquisições de casa por parte de cidadãos estrangeiros.
Segundo o Parecer sobre a Conta Geral do Estado, publicado pelo Tribunal de Contas (gráfico 76, página 213, elaborado a partir de dados da AT), no final de 2023, havia 114.645 residentes a beneficiar do estatuto fiscal do RESIDENTE NÃO HABITUAL, entretanto revogado, mas para o qual a Lei do Orçamento de Estado de 2024 estabeleceu uma disposição transitória.
Este valor representa um acréscimo de 40.387 beneficiários em 2023 face ao ano anterior. Uma evolução anual significativamente superior às variações registadas em 2022 (+16.371), 2021 (+10.797), 2020 (+10.596) e 2019 (+10.808) [poder-se-á especular, por exemplo, se os números de 2020 e 2021 terão sido condicionados pela pandemia].
Recordo que a elegibilidade para o regime fiscal do RESIDENTE NÃO HABITUAL exige que estas pessoas preencham os requisitos de residente (permanecer mais de 183 dias em Portugal), e que tenham como morada habitual, das duas uma, um imóvel do qual sejam proprietários, ou sobre o qual haja um contrato de arrendamento habitacional que os identifique como inquilinos (admito que o comodato também seja elegível, mas não conheço muitas pessoas disposta a ceder imóveis residenciais a título gratuito).
Isto significa – não se trata de uma opinião, mas de uma evidência decorrente dos próprios requisitos do estatuto — que este regime tem um impacto direto na procura de habitação em Portugal: por cada estatuto de residente não habitual que é concedido, tem de haver pelo menos um imóvel a ser comprado ou arrendado pelo seu beneficiário.
Para ter noção, em 2023, venderam-se 136.499 casas e arrendaram-se 94.553 (sabemos também que existe arrendamento informal, mas não me é possível quantificá-lo).
Estamos a falar de 231.052 casas: uma grandeza que conferiu aos 40.387 novos beneficiários deste regime em 2023, um peso relativo de 17,5%.
Ou se preferir: uma em cada seis casas que tenham sido vendidas ou objeto de contrato de arrendamento em Portugal.
É, convenhamos, um valor bastante expressivo (ainda que, sublinhe-se, muito superior aos anos imediatamente anteriores).
Sendo que temos motivos para acreditar (a começar por aquilo que o senso-comum sugere) que estas pessoas não só não estão espalhadas de forma homogénea pelo país, como é bem possível que tendam a eleger como destino, municípios onde já se faça sentir uma maior pressão habitacional.
Será este cenário plausível?
Poder-se-ia argumentar que, “no momento da compra ou arrendamento, estas pessoas ainda tinham residência habitual fora de Portugal”, e que por isso terão sido contabilizadas como alguém cujo domicílio fiscal é estrangeiro (porque, só após a compra da habitação, se teriam registado como residentes). É uma suposição perfeitamente razoável.
É possível que seja isso que esteja a acontecer?
Em tese, seguramente que sim.
Quão realista parece ser esse cenário?
Sinceramente, muito pouco.
Ao longo dos últimos 5 anos para os quais há dados oficiais (2019, 2020, 2021, 2022 e 2023), o acréscimo de residentes não habituais num dado ano civil é sempre superior ao número total de pessoas com domicílio fiscal fora de Portugal a comprar casa neste país nesse mesmo ano.
E em 2023, o acréscimo de residentes não habituais – 40.387 – foi quase quatro vezes superior às 10.391 “aquisições por parte de adquirentes com domicílio fiscal fora de Portugal”.

Fontes: INE e Tribunal de Contas (ambos recorrendo a dados fornecidos pela AT).
Será que algumas destas pessoas celebram contratos de arrendamento apressadamente, para assegurar o estatuto? E só depois compram casa?
Levanto esta questão porque já recebi contactos de pessoas que gostariam de celebrar contratos de arrendamento "nos próximos dias" (e que, aparentemente, estariam dispostos a pagar valores substancialmente acima de mercado para assegurar esse objetivo). E que declararam também, sem grandes rodeios, que mais que uma casa para viver, pretendiam assegurar um contrato para apresentar às autoridades, com vista à obtenção de algo por parte das autoridades portuguesas.
Não estou a sugerir que casos como estes constituam a norma. Não creio que o sejam. Estou apenas a lembrar que não basta conhecer as estatísticas e as suas metodologias. É igualmente importante tentar entender o que acontece no terreno. Porque isso nos ajuda a dar contexto aos números. Ou a encontrar motivos válidos para os questionar...
A dúvida permanece
O critério adotado pelo INE para estimar a “procura estrangeira” em Portugal, parece ignorar um subgrupo composto esmagadoramente por cidadãos estrangeiros [em 2017, segundo o estudo Os Benefícios Fiscais em Portugal (página 134, gráfico 2), apenas 6,9% do total dos beneficiários deste regime fiscal tinham nascido Portugal] para quem, repito, um dos critérios de elegibilidade era ser considerado residente fiscal no país, tendo para esse efeito de comprovar a titularidade ou o arrendamento de casa em Portugal.
Por hipótese, caso ¼ destes novos residentes de 2023 tivesse optado por comprar casa quando chegou ao país (acompanhando o meu raciocínio de há pouco, segundo o qual é mais prudente arrendar uma casa quando se chega a um destino novo), e os restantes ¾ tivesse escolhido arrendar (porque eram obrigados a fazer uma dessas coisas para aceder ao regime), isso significaria que a procura de casa por cidadãos estrangeiros em Portugal poderia ser, só por via deste regime, cerca do dobro daquela que é estimada pelo INE com base no critério de domicílio fiscal.
Quantas mais aquisições por cidadãos estrangeiros poderão estar a escapar às estatísticas oficiais?

Não foi possível ainda identificar o autor.
V – A importância de não esquecer o essencial
“O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão de saber.”
Daniel J. Boorstin
Durante o passado mês de maio, muito se falou sobre quem poderia ser o próximo Papa. A imprensa nacional deu especial atenção a José Tolentino Mendonça, cardeal português que reside no Vaticano desde 2018, e às suas probabilidades de ser eleito.
O que descreve melhor o Cardeal José Tolentino Mendonça?
A nacionalidade portuguesa? Ou a residência no Vaticano?
Devemos referir-nos a José Tolentino Mendonça como “o cardeal português” ou como “o cardeal com domicílio fiscal no Vaticano”?
O aparente absurdo da pergunta – note-se que nada sei sobre a(s) residência(s) de José Tolentino Mendonça – serve apenas para ilustrar como a convicção do INE (segundo a qual, “em termos de quantificação da procura estrangeira o critério relevante deve ser efetivamente o domicílio fiscal e não a naturalidade ou nacionalidade”), sem o devido enquadramento, tem boas probabilidades de ser deturpado pelo nosso discurso quotidiano.
Quando um cidadão brasileiro, ucraniano ou filipino faz uma visita a uma casa cuja venda ou arrendamento eu esteja a promover, e dou feedback ao proprietário sobre como correu a visita, não me refiro àquelas pessoas em função do seu domicílio fiscal, desde logo porque essa informação, muito provavelmente, nem sequer foi partilhada.
A verdade é que a esmagadora maioria das pessoas (incluindo o mais rigoroso dos jornalistas) não tende a fazer considerações sobre o domicílio fiscal das pessoas com quem se cruza no supermercado ou com quem disputa a compra de uma casa. Nem tampouco do seu realizador de cinema preferido, ou do seu jogador de futebol favorito.
Se o INE “(...) tem por missão produzir e divulgar de forma eficaz, eficiente e isenta, informação estatística oficial de qualidade, relevante para toda a Sociedade”, deve tentar antecipar o modo como poderão ser interpretados e veiculados os dados que publica, por forma a prevenir focos de desinformação.
Não estou a dizer que o INE não leva a cabo essa reflexão e esse esforço. Estou apenas a tentar mostrar que, no que diz respeito a esta dimensão particular, não conseguiu prevenir que a informação publicada fosse mal interpretada, e difundida de forma enganadora.
Tão ou mais grave que não ter dados sobre uma dada realidade, é assistir à divulgação de informação que não é verdadeira.
E como se verá no capítulo seguinte, é precisamente isso que está a acontecer.
VI – Especialistas e jornalistas distraídos
"A quantidade de energia necessária para refutar disparates é uma ordem de grandeza maior do que a necessária para produzi-los"
Alberto Brandolini
O excerto seguinte pertence a um artigo publicado em janeiro de 2023 na página da JLL em Portugal (removido depois da publicação deste artigo), assinado por Patrícia Barão (à data, a responsável pelo segmento residencial daquela mediadora), vice-presidente da mais mediática associação de empresas de mediação imobiliária, e uma das vozes mais escutadas pelos media em matérias relacionadas com o mercado residencial.
"Depois, vemos que nos últimos quatro anos, apenas 6% das casas vendidas foram compradas por estrangeiros (dados INE). Ou seja, são os portugueses quem faz o nosso mercado, gerando 94% das vendas."
Não é verdade que a afirmação “apenas 6% das casas vendidas foram compradas por estrangeiros” seja suportada por dados do INE.
E é paradoxal que seja precisamente a nota “(dados INE)” – aquela que pretende atestar a fiabilidade dos dados apresentados ao leitor – que qualifica aquela frase como falsa.
Ora, se o INE não disse que “apenas 6% das casas vendidas foram compradas por estrangeiros” (e não disse: ou seja, não publicou dados que sustentem tal afirmação), a autora não está em condições de concluir, pelo menos sob a autoridade do INE, que "(...) são os portugueses quem faz o nosso mercado, gerando 94% das vendas".
Vejamos agora este artigo da Agência Lusa, de 23 de Junho de 2025:
Compra de casas por estrangeiros cai para mínimos desde 2021
Este título foi replicado ipsis verbis um pouco por toda a imprensa, entre os quais RTP, SIC, CNN, Sábado ou O Jornal Económico.
Pois bem, o relatório do INE que está na origem destes artigos (e que, em rigor, é o único motivo para a existência destas notícias) não refere, em nenhuma das suas 14 páginas, as palavras "estrangeiro", "estrangeira", "estrangeiros" ou "estrangeiras" uma única vez.
Aparentemente, para a imprensa nacional, “estrangeiros” e “não residentes” são sinónimos perfeitos.
Será esta simplificação aceitável no discurso corrente?
Admito que sim.
Mas será aceitável tal simplificação em peças jornalísticas dedicadas aos dados oficiais sobre os preços da habitação?
A única resposta que posso conceber é esta: não.
Não está apenas em causa a gravidade de os media divulgarem números rotulados de forma indevida: estes dados dizem respeito a uma das dimensões mais críticas da vida das pessoas, e que se tornou num dos maiores desafios nacionais.
O mais surpreendente de tudo?
Os números que vou partilhar em seguida foram publicados pelo INE no mesmo relatório – e têm também a AT como fonte.
Mas foram totalmente ignorados por especialistas e media.
E quando assim é, dá-se um fenómeno vagamente perturbador:
– É como se nunca tivessem existido.

Por Wonderlane.
VII – Quão diferente é 28,7% de 6,3%? (o dia em que todos puderam ver a luz, mas quase todos ficaram na penumbra)
"Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas."
(usualmente atribuída a) Mark Twain
O relatório do Índice de Preços da Habitação relativo ao 4º trimestre de 2024, publicado a 21 de Março de 2025, incluiu a informação adicional que vinha sendo divulgada desde o relatório de 23 de Março de 2022 (e que detalhei na parte III deste artigo).
Ou seja, o relatório de 21 de Março de 2025 diz-nos que:
– 86,1% das casas vendidas em Portugal no ano de 2024 foram compradas por pessoas singulares.
As restantes 13,9% foram adquiridas por pessoas coletivas (empresas não financeiras, sociedades financeiras, administrações públicas ou instituições sem fins lucrativos ao serviço das famílias);
– 93,7% das casas vendidas em Portugal no ano de 2024 foram compradas por cidadãos com domicílio fiscal em Portugal.
As 6,3% restantes foram adquiridas por pessoas com domicílio fiscal em outros países.
Mas este relatório facultou também, pela primeira vez “informação adicional relativa ao universo das transações de habitações cujo comprador pertence ao setor institucional das Famílias”, nomeadamente, a naturalidade* dos cidadãos que adquiriram casas.
Os dados sobre as transações levadas a cabo por compradores em função da sua naturalidade são detalhados e confrontados com as aquisições contabilizadas em função do domicílio fiscal. Este exercício é feito nas páginas 16, 17, 18 e 19 deste relatório, e o resultado é muitíssimo interessante.
* para ser mais preciso, o INE entendeu que deveria considerar como naturalidade o “local do nascimento ou local da residência habitual da mãe à data do nascimento”.
Os dados que o INE nunca havia partilhado
Em 2024, das 134.540 casas que foram vendidas a pessoas singulares, 71,3% (95.988) tiveram como compradores pessoas com naturalidade em Portugal.
O que significa que, nesse mesmo ano, 28,7% (38.552) dessas habitações foram vendidas a pessoas com naturalidade em país estrangeiro.
28,7%. Um valor incomparavelmente superior aos 6,3% contabilizados via domicílio fiscal.
Conclusão
Dos três critérios mencionados que estão ou podem estar correlacionados com a procura estrangeira (nacionalidade, naturalidade e domicílio fiscal), o INE considera que, "(...) em termos de quantificação da procura estrangeira o critério relevante deve ser efetivamente o domicílio fiscal e não a naturalidade ou nacionalidade, pois estas últimas não dão qualquer indicação sobre o país em que o adquirente reside e onde terá, presumivelmente, obtido os rendimentos que lhe permitem posteriormente adquirir uma habitação em Portugal."
Com toda a honestidade, não consigo entender esta justificação pois – como referi anteriormente – não creio que o propósito destes relatórios seja rastrear os fundos utilizados na aquisição dos imóveis. Em todo o caso, o INE não tem acesso ao critério que define, objetivamente, aquilo que é ou não estrangeiro: a nacionalidade. E nesse sentido, caber-lhe-ia sempre a opção de definir o critério sucedâneo.
A questão é: não só – pelo menos como foi apresentada – a justificação é difícil de compreender, como o número que dela resulta expressa uma diferença abissal face ao outro critério disponível: a naturalidade.
Não deveria o INE, independentemente do seu entendimento, dar um pouco mais de contexto? Nomeadamente, informando que a opção por outra variável conduziria a valores tão diferentes?
É que foi isso mesmo que fez no relatório de Março de 2025 (não sublinhou a diferença, mas qualquer pessoa que tivesse prestado atenção àquelas páginas, tê-la-ia identificado). Mas que deixou de fazer três meses depois, em Junho, quando publicou o relatório subsequente.
Porque não consigo deixar de sublinhar: 28,7% é muito diferente de 6,3%. E se ambas poderiam quantificar uma mesma grandeza (no caso, a procura estrangeira) algum contexto pode e deve ser dado.
O gráfico seguinte ilustra o quão diferente é 28,7% de 6,3%

Fonte: INE.
Para ser rigoroso, importa sublinhar que os 6,3% expressam um peso relativo face ao total de imóveis vendidos (incluindo pessoas coletivas), enquanto que os 28,7% dizem respeito ao peso relativo considerando apenas as aquisições por pessoas singulares, uma vez que a naturalidade só se aplica a estas (uma pessoa coletiva não tem "lugar de nascimento").
Com o ajuste no denominador (de 134.540 casas adquiridas por pessoas singulares para o total de 156.325 casas vendidas em Portugal em 2024), o peso do número de casas adquiridas por cidadãos estrangeiros face ao total de casas é de 24,7%.
Ainda assim, trata-se do quádruplo da quantificação da procura estrangeira por via da naturalidade, quando comparada com a mesma contabilização via critério domicílio fiscal/residência habitual (24,7% vs. 6,3%).

Por: Gustavo Frazão.
VIII – Reflexões finais
"É mais fácil para o mundo aceitar uma mentira simples do que uma verdade complexa."
Alexis de Tocqueville
Mas por que será relevante saber se quem compra uma casa tem naturalidade, nacionalidade ou residência em Portugal?
Desde logo, não só não nutro qualquer antipatia por pessoas oriundas de outros locais, como a minha subsistência depende delas: o grosso dos meus rendimentos é assegurado pela prestação de serviços de mediação imobiliária a clientes estrangeiros.
Estarei próximo do percentil 99 entre as pessoas que mais seriam beneficiadas se o regime de residentes não habituais continuasse a taxar 0% em sede de IRS, se não houvesse restrições ao alojamento local, ou se a aquisição de casas fosse elegível para vistos dourados, prateados ou platinados.
Na minha opinião – e usando a expressão que o INE empregou na resposta ao meu e-mail –, o "critério relevante" quando se analisa a procura estrangeira é o rendimento.
Como vimos na parte III [Lembra-se? Os números do INE relativos a 2019, 2020 e 2021 evidenciavam que o preço médio das habitações compradas por não residentes se aproximava do dobro do valor médio daquelas que haviam sido compradas por residentes], poderá assumir-se que o rendimento de uma parte significativa (não necessariamente maioritária) dos estrangeiros, tende a ser superior.
E que por isso, a sua capacidade de comprar uma habitação é substancialmente diferente da maioria daqueles que nasceram ou cresceram em Portugal. Também por esse motivo, é natural que parte da oferta habitacional seja canalizada para segmentos de mercado com maior disponibilidade financeira.
Não está em causa qualquer juízo moral sobre a opção totalmente legítima e racional de um promotor imobiliário, que opte por desenvolver produtos para segmentos mais altos da população. Que, pelo menos em teoria, oferecem uma margem mais confortável de lucro, e têm como destinatários pessoas menos dependentes do financiamento bancário, e menos vulneráveis a (mudanças de) ciclos económicos.
No entanto, se subestimarmos o peso da procura estrangeira com maior disponibilidade financeira, e ignorarmos a tendência para o desenvolvimento de produtos orientados para esses segmentos, menor a probabilidade de o Estado compreender a real dimensão do desafio — e maiores os obstáculos à criação de incentivos que motivem os promotores a focar-se nos estratos mais baixos da procura.
O que é curioso é que, num país em que se repete tantas vezes o direito constitucional à habitação, o Estado taxe praticamente da mesma forma uma pessoa que já comprou 17 casas, alguém que não paga impostos sobre o rendimento em Portugal (e adquira uma casa para investimento), e uma pessoa que esteja a comprar, pela primeira vez, a sua habitação própria.
É verdade que, na legislatura anterior, foi dado um passo: (genericamente) a isenção total de IMT até transações de 324 mil euros (e isenção parcial até 648 mil euros) para compradores até 35 anos.
Mas objetivamente: uma pessoa de 40, 50 ou 60 anos que nunca comprou ou conseguiu comprar casa, não deveria também beneficiar dessa isenção?
O Estado tem mesmo de continuar a tributar a primeira aquisição de habitação própria permanente? Ainda mais, num contexto de consistente crescimento da receita do IMT?
(in)sucessos recentes
Recordo que o anterior primeiro-ministro, António Costa, prometeu a edificação de 26 mil casas em meia dúzia de anos. Este desejo foi expresso em 2018, para ser concretizado até 2024, mas em Setembro de 2023 – dois meses antes de apresentar a sua demissão – apenas 1.400 habitações haviam sido concluídas (e quando o governo seguinte entrou em funções, foram contabilizadas apenas 1.600).
Trata-se de uma taxa de execução a rondar os 6%.
Ou que em finais de 2023, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) se preparava para relançar, com um formato distinto, dois concursos públicos para a construção de mais de 500 fogos em Benfica e no Parque das Nações, que não haviam conseguido atrair uma única candidatura entre Outubro de 2021 e Dezembro de 2022. E que no início de 2024, estes planos ainda estavam parados por falta de entendimento político na CML.
Em Setembro de 2024, o governo do atual primeiro-ministro elevou a fasquia de 59 mil casas até 2030. E em Abril de 2025, já em vésperas de nova campanha eleitoral (de umas eleições que voltou a vencer), subiu a fasquia para 130 mil novos fogos disponíveis, entre construção nova e reabilitação. Uma vez que Luís Montenegro governa há pouco mais de um ano parece prematuro exigir-lhe resultados numa matéria que implica prazos tão alargados. Mas uma coisa parece certa: estas casas só existirão se forem criadas condições para atrair investimento privado.
O que realmente importa
Quando o INE [conceção e divulgação de dados] adota uma opção que pode subestimar uma realidade (sem o cuidado de indicar que outras variáveis disponíveis poderiam conduzir a leituras substancialmente diferentes) é – no meu entender – parcialmente responsável por que especialistas e jornalistas [formação de opiniões] possam desvalorizar o impacto dessa mesma realidade.
Sendo que os jornalistas e os especialistas a quem os órgãos de comunicação dão palco, são quem mais contribui para a formação daquilo que usualmente se designa por opinião pública.
A julgar pela informação veiculada, nem os jornalistas têm dedicado muito tempo a detalhes (reconheço que o ritmo de publicação de conteúdos no contexto digital é altamente exigente), nem os especialistas se importam tanto com a divulgação de informação cuidada, quanto – por vezes – se preocupam em tentar influenciar a opinião pública em prol dos seus interesses.
Interesses (muitas vezes de ordem económica) que os media que lhes dão voz, raras vezes têm o cuidado em assinalar. Afinal de contas, qual a relevância de informar a audiência de que aquele convidado pode muito bem estar a defender uma posição que eventualmente o beneficia a ele, aos seus clientes, ou à empresa para a qual trabalha?
Talvez seja apenas desleixo. Ou como agora se costuma dizer, "falta de noção". Uma coisa é certa: sempre que isto sucede, há um pedaço de transparência que se perde e não se recupera mais.
É a opinião pública que mais coloca pressão sobre a ação política, que por sua vez, se guia por dados oficiais ou, eventualmente, pela interpretação mais consensual que media e especialistas possam fazer deles. Caso se subestimem as causas (e acho que este artigo evidencia bem como a procura estrangeira tem sido desvalorizada), arriscamos a que os efeitos delineados para as atenuar, possam estar condenados ao fracasso. E considerando o atual contexto da habitação, é capaz de ser isso que temos andado a fazer: fracassar.
E porque fracassamos nós?
Há imensas pessoas para as quais a frase favorita parece ser "O fenómeno x não é responsável pela crise de acesso à habitação". Ao final do dia, temos um conjunto de causas cujo efeito é ignorado por uma retórica que assenta na ideia de que "todos os problemas relacionados com a habitação não são culpa deste fenómeno". Algo cuja verdade não discuto, mas cuja pertinência merece ser tratada como um saco de boxe.
É uma caricatura recorrente – evidentemente, os problemas de acesso à habitação não são consequência de um efeito apenas – que visa desresponsabilizar qualquer dinâmica pelo seu contributo para um contexto em que, tantas pessoas com trabalho e salário não conseguem pagar uma casa.
Todos têm direito a ter os seus interesses, mas o público também tem direito a saber que eles existem, nomeadamente quando é um orgão de comunicação social a dar-lhes voz.
É um contributo simples, mas de grande importância para a transparência de qualquer discussão pública.
Sinceramente, não creio que estejamos nesse patamar.

Por Hugo Amaral.
IX – Uma última nota sobre o arrendamento (e a sua inexplicável exclusão da análise da dinâmica dos preços da habitação)
"A falsidade voa, e a verdade vem a coxear atrás"
Jonathan Swift
O impacto da procura estrangeira no arrendamento
A evolução do preço das casas num dado local não é definida estritamente pelo mercado de compra e venda. Essa trajetória é também influenciada pelo valor que alguém paga para viver (ou passar uma temporada) em casa de outra pessoa. Em última análise, o valor de mercado de uma habitação é um múltiplo do valor da renda, que se estima que alguém esteja disposto a pagar para lá morar.
A procura estrangeira impacta de forma significativa o mercado de arrendamento. Em tese, mesmo que não houvesse um único estrangeiro a comprar casa em Portugal, o efeito da procura estrangeira por casas para arrendar poderia afetar os valores de venda.
Veja este pequeno levantamento que levei a cabo em Dezembro de 2023, com base no portal imobiliário Idealista, quando escrevi um texto totalmente dedicado à Procura por habitação em Portugal, num conjunto de artigos aos quais chamei de ESPECIAL HABITAÇÃO.
No dia 4 de Dezembro de 2023:
– Dos 1.018 anúncios publicados no Idealista, de T2 para arrendar em Lisboa, 51% (522 anúncios) custavam 2.000€ ou mais.
– Dos 259 anúncios publicados no Idealista, de T2 para arrendar em Cascais, 56% (146 anúncios) custavam 2.000€ ou mais.
– Dos 390 anúncios publicados no Idealista, de T2 para arrendar no Porto, 25% (96 anúncios) custavam 2.000€ ou mais.
– Dos 101 anúncios publicados no Idealista, de T2 para arrendar em Matosinhos, 27% (27 anúncios) custavam 2.000€ ou mais.
Parece-me consensual afirmar que a esmagadora maioria das famílias portuguesas não é capaz de pagar uma renda mensal de 2.000€.
E se por outro lado, é razoável lembrar que Lisboa e Cascais, e Porto e Matosinhos, são os concelhos mais caros das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (e que nem todos podemos viver lá), é igualmente relevante sublinhar:
- Que estes 4 municípios – entre os 308 existentes no país – concentram 11% do total da população nacional.
- E que, em 2020, o salário médio bruto nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto era, respetivamente, de 1.472€ e 1.191€.
Vejamos ainda um outro exemplo
No Verão de 2018, em vésperas da inauguração das novas instalações da Nova School of Business em Carcavelos, muito se falava na subida de preço das casas em torno da faculdade.
Não tardei mais de 30 segundos a encontrar estes dois artigos, de Setembro e Novembro desse ano, no Jornal de Negócios e no Eco, inteiramente dedicados ao tema.
Quando uma instituição de ensino que figura em lugares cimeiros dos rankings internacionais, e atrai estudantes de todo o mundo é transferida para um novo local (e esse local fica em frente à praia)...
Não há dados publicados sobre a evolução do número de compras e arrendamentos de cidadãos estrangeiros nas imediações da faculdade, mas o mais elementar senso comum (e a experiência daqueles que por lá promoveram o arrendamento de casas) sugere que os alunos – o site da NOVA SBE diz que 55% deles são provenientes de outros países, e um artigo patrocinado pela faculdade refere que esta proporção é de 70% nos mestrados – não desataram a comprar casas nas imediações da faculdade, mas a arrendá-las, ou aos seus quartos.
Ou seja, todos os indicadores sugerem que os preços subiram nas imediações da NOVA SBE por via do impacto da procura estrangeira, mas que esta não se traduziu através da compra de imóveis, mas na pressão sobre o arrendamento total ou parcial das casas, a estudantes estrangeiros daquela faculdade.
Quanto maior o valor da renda, maior o potencial de rentabilidade daquela casa — que, neste cenário, passa a ser vista como um ativo de rendimento.
Estimar o efeito da procura estrangeira ou não residente, sobre os preços das casas, nomeadamente em zonas como a Área Metropolitana de Lisboa, o Município do Porto, ou a Região do Algarve, unicamente por via da contabilização do número de casas que estas pessoas compram, é manifestamente insuficiente.
O comportamento do mercado de arrendamento é importante. E deverá ser ainda mais decisivo quando falamos de uma franja da população cuja condição sugere, desde logo, uma maior mobilidade.