Coronavírus
02 Dezembro 2020
É provável que este seja o mais estranho dos anos das nossas vidas. E por mais danos que este coronavírus ainda possa causar à saúde pública e à economia em 2021, 2020 é o ano Covid. Mesmo que o seu segundo nome seja 19.
Os meses de Novembro e Dezembro em Portugal são apenas mais um bom exemplo da indefinição que temos vivido ao longo deste ano. Quantos de nós, que residem nos concelhos aos quais se aplica o estado de emergência, conseguirão enumerar sem hesitações, os horários em que lhes é permitido circular e em que o comércio está aberto, em cada um dos dias da semana?
A indefinição tem feito parte das vidas da maioria de nós como nunca havia feito antes. E só há uma coisa pior para a economia que a indefinição: a concretização dos receios que estão na sua origem.
Depois da apreensão com a doença e o respectivo contágio, o maior medo que a crise pandémica conseguiu criar foi o da quebra de rendimentos. As imagens de metrópoles desertas um pouco por todo o mundo eram um reverso de uma outra realidade: o mundo estava em casa e parte dele impedido de trabalhar.
A influência da economia e da acção política no imobiliário
Um dos factores essenciais para analisar o mercado imobiliário é o estado da economia. Se uma dada actividade vê a sua capacidade de gerar rendimentos reduzida ou extinta, não são apenas os compromissos financeiros desse negócio que estão em risco. Mas também os compromissos de cada um daqueles cujo rendimento depende da actividade em causa. No mesmo dia em que foi declarado pela primeira vez neste século o estado de emergência em Portugal, já se discutia a suspensão ou a renegociação de rendas de habitações e espaços comerciais. O que significa, e isto não é mais que a constatação de um facto, que o valor dos imóveis foi questionado deste o primeiro dia desta crise.
Outro factor que condiciona igualmente o mercado imobiliário: a acção política e a respectiva intervenção legislativa. Os exemplos mais óbvios disso mesmo foram os mecanismos de layoff e as moratórias de crédito, cujo impacto na mitigação dos efeitos da paralisação da economia, foi por demais evidente. Estas duas medidas não fazem milagres. Mas tiveram o mérito de evitar um número maior de desempregados e prevenir o incumprimento bancário. E dão tempo. Tempo para soluções de saúde pública. Mas tempo também para que cada um encontre soluções para os seus problemas particulares.
Mas como tantos outros recursos, o tempo não é inesgotável. Por quanto mais tempo poderá o Estado suportar mecanismos de layoff? Se os despedimentos têm afectado até agora essencialmente micro e pequenas empresas, a verdade é que nas últimas semanas tem havido depoimentos de alguns dos mais mediáticos escritórios de advocacia, a constatar que têm em mãos processos de despedimentos colectivos em grandes empresas. A nota positiva é que em Outubro, mês em que cessavam as limitações ao despedimento impostas pelo regime de layoff simplificado, a evolução dos números do desemprego foi menos dramática do que aquilo que se poderia esperar.
Mas admito que o que acabei de escrever cause desconforto e alguma irritação aos 995 (vs. 692 de Setembro) novos desempregados que resultaram dos 63 (vs. 66 de Setembro) processos de despedimento colectivo que o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social anunciou terem sido levados a cabo nesse mês.
E as moratórias? Foram prolongadas até Setembro de 2021 mas, já em Outubro deste ano, o Conselho de Finanças Públicas alertava para a possibilidade de uma intervenção do Estado para mitigar eventuais perdas dos bancos. Segundo um estudo da DBRS publicado em Outubro, assente em dados do final de Junho sobre 45 bancos europeus (por cá foram analisados BCP, Montepio e Novo Banco), Portugal é – de longe – o país com maior peso das moratórias sobre o total da carteira de crédito: 22% (o mesmíssimo valor que o Banco de Portugal já havia avançado). Sabendo-se que estes são dados de Junho e que os prazos para aderir às moratórias têm sido alargados sucessivamente (é possível fazê-lo até 31 de Março de 2021) este número, já bastante impressionante por si mesmo, crescerá seguramente.
Dito isto, resta saber como é que estes dados poderão condicionar, durante 2021 e 2022, a disponibilidade dos bancos para continuar a 1) financiar a compra de casa até 90% do valor de transacção/avaliação, 2) fazê-lo aos spreads actuais (desde Setembro que há bancos a baixar a marca do 1%).
Mais, segundo um estudo da Organização Mundial do Trabalho, Portugal foi o país – num conjunto de 28 nações europeias – que registou a maior quebra salarial entre o primeiro e o segundo trimestre deste ano, por via do desemprego ou da redução de horas de trabalho.
Por outro lado, as taxas de juro baixas (e a percepção de que assim se manterão por alguns anos; a visão de Christine Lagarde à frente do Banco Central Europeu parece dar continuidade às ideias de Mario Draghi), continuarão a reflectir um défice de investimentos alternativos. O que poderá resultar numa menor exigência com o retorno do investimento imobiliário: os mesmos clientes que me falavam em rentabilidades brutas de 4%, 5% e 6% há dois anos talvez se contentem com 3% aos dias de hoje. A questão é: estarão dispostos fazer investimentos sem questionar os valores de transacção face à conjuntura actual?
A importância da demografia
A literatura que tem surgido sobre esta crise vem sugerindo aquilo que parece ser mais ou menos evidente: que a economia e o imobiliário dos países que mais dependem do turismo se vão ressentir de forma mais agravada. Mas permita-me que partilhe uma crença optimista que tenho sobre a atractividade nacional: nos últimos anos Portugal fez mais que tornar-se num destino turístico de referência.
O Visit Portugal tem declinado suavemente num Moving to Portugal e o país tem conseguido, cada vez mais, afirmar-se como um lugar onde as pessoas querem estar, não apenas alguns dias ou semanas, mas por um período sem final marcado. E não deixa de ser relevante que, numa altura em que o trabalho remoto atinge valores não imaginados em períodos pré-covid, se comece a ver documentado na imprensa internacional, alguma relutância de expatriados e nómadas digitais em rumar face às grandes metrópoles do costume (neste artigo da Bloomberg, não falta o habitual parágrafo dedicado a Lisboa e Portugal). Dito isto, e segundo o último Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a população estrangeira residente em Portugal aumentou 22,9% face a 2018 (que havia registado um aumento de 13.9%, já de si bastante superior aos 6% de 2017 e aos 2,3% de 2016).
É verdade que mais de 25% da comunidade estrangeira em Portugal é brasileira, e que o seu número de residentes cresceu 77% entre 2017 e 2019, atingindo os 151.304 brasileiros em Portugal. E é justo sugerir que isso se deverá mais à instabilidade social naquele país que aos méritos da vida por cá. Mas esta dinâmica não se extingue com o Brasil: ainda que a outra escala de valor absoluto (34.358 pessoas), o Reino Unido viu a sua população residente em Portugal aumentar 30% entre 2018 e 2019, estando a pouco mais de três milhares de habitantes de destronar Cabo Verde como a segunda maior comunidade estrangeira em Portugal.
Uma coisa é certa, bastante mais relevante que o número de cliques anunciados pelos portais imobiliários, o mais elementar dos indicadores sobre a procura de habitação é a evolução da população de uma dada região. E num país em que o saldo natural (a diferença entre o número de nascimentos e de mortos) se mantém negativo deste 2009, foi o saldo migratório (a diferença entre entradas e saídas migratórias, que também acumulou valores negativos de 2011 a 2016) que garantiu o ano passado – depois de 9 anos consecutivos em declínio sucessivo – um aumento da população. Será esta uma tendência para ficar?
E depois, há todo um mundo de tops no qual Portugal parece teimar em aparecer nos lugares cimeiros, e que de alguma forma contribuem para o seu marketing além-fronteiras. De memória posso dizer que, para além do já mui conhecido epíteto de terceiro país mais seguro do mundo concedido pelo Institute for Economics and Peace; o English Proeficienccy Index da Education First diz que só se fala melhor inglês na Holanda, Escandinávia e Áustria, algo que me parece verdadeiramente impressionante. Isto só para enumerar dois dos rankings que me pareceram mais fiáveis. Não sei quantos outros haverá em que Portugal não consta no topo, e sobre os quais não há notícias por lá não aparecermos, mas acredito cada vez mais na ideia de Portugal como um país que, para além daquelas coisas que toda a gente já sabe sobre o clima, a cozinha ou a bonomia, apresenta uma oferta competitiva em matéria de segurança, urbanidade e infra-estruturas.
Dito tudo isto, sou da opinião de que o valor das casas já vem descendo residualmente desde Maio (tendo bem presente que, estejamos nós a falar do país ou de uma freguesia, há quase sempre lugar à heterogeneidade). E que muitos dos dados que suportam o contrário, ou estão incompletos, ou incluem um número significativo de negócios que foram fechados e sinalizados no 1º trimestre, antes mesmo da crise ter lugar, mas cujas escrituras só tiveram lugar nos meses seguintes (momento em que a trasacção é registada oficialmente). Aliás, segundo o Instituto Nacional de Estatística e no 2º trimestre deste ano (cuja análise deve ter em conta o que acabei de dizer sobre o desfasamento temporal entre o fecho do negócio e a formalização da transacção), os valores medianos/m2 por transacção baixaram em 10 das 24 freguesias lisboetas (embora tenham atingiram valores recorde em outras 12). Acredito que os dados oficiais do 3º trimestre se limitarão a confirmar o óbvio: a descida de preços não é mais que a reacção do mercado imobiliário à paralisação social e económica causada pela pandemia. E que obviamente só não foi mais evidente por via da acção política que se exigia, e pela manutenção das taxas de juro a níveis historicamente baixos.
Mas há uma coisa que é importante lembrar: a motivação das pessoas para comprar e vender casa decorre muito menos dos ciclos económicos que dos ciclos da narrativa da sua própria vida. Muito mais que fomentar um desejo, a conjuntura económica facilita-o ou dificulta-o. Dito isto, e sem prejuízo óbvio do impacto que um estado de emergência tem no número de transacções imobiliárias (como num milhão de outras coisas), as pessoas – assim o consigam – vão continuar a seguir a sua vida. E isso significa também continuar a comprar, vender ou arrendar casa. E dizer que os preços estão a descer não é anunciar um crash. É apenas lembrar que, quando grande parte do mundo está a perder dinheiro (ou a ganhar menos do que havia esperado), e a mobilidade se vê tão comprometida, seria de estranhar que o valor das casas continuasse a subir.
Os governos nacionais e a União Europeia (neste último caso, como nunca antes na sua história) estarão bem atentos à necessidade de mitigar a perda de rendimentos e prevenir o incumprimento bancário. Mais tarde ou mais cedo haveremos de perceber com que sucesso. E se a ênfase dos governos foi, até à data, evitar a destruição generalizada do emprego... é de esperar que comecem a pensar em políticas activas de emprego para promover a contratação, qual New Deal do século XXI.
Mas falar em sucesso na luta contra os danos económicos da pandemia sem ter presente que tudo isto é, primeiro que qualquer outra coisa uma crise de saúde pública, roçará sempre a pura divagação. Resta fazer figas para que as vacinas que tanta euforia têm gerado nas últimas semanas, sejam tudo aquilo que delas se espera.
E pode até não parecer, quando comparado com muito do que se lê nas secções de imobiliário dos media, mas este é um texto optimista.