Arquitetura
13 Janeiro 2019
Era uma casa, muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entral nela não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque pinico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos bobos, número zero
A “casa muito engraçada” de Vinicius de Moraes, à qual foram dedicados alguns dos versos mais conhecidos da literatura infantil brasileira, é mais que a expressão cândida de um imaginário pueril. Aquele poema, publicado em canção no ano da morte do seu compositor, tem uma história bem distinta dos demais. E essa singularidade tem um nome: Casapueblo.
Vinicius de Moraes não foi apenas poeta e compositor (ou cantor e jornalista). Este carioca foi também diplomata até Janeiro de 1968 (Vinicius tomou conhecimento do seu afastamento em Lisboa, no mesmo dia em que actuava no Teatro Vilarret com Chico Buarque). Quando desempenhava funções consulares em Montevideu, Vinicius de Moraes conviveu de perto com o escultor e pintor Carlos Páez Vilaró. E é de um empreendimento imobiliário deste artista plástico uruguaio que se conta a história desta música.
Vilaró chegou pela primeira vez a Punta Ballena em 1958 e apaixonou-se por aquele local deserto, a 15km de Punta del Este (aos nossos dias, uma das mais badaladas estâncias balneares da América do Sul). Descobriu que havia 40 hectares à venda e – depois de formar com irmão e amigos a La Ballena S.A. – escolheu o lote 22, de 4 873,5 m2. Começou por erguer um pequeno casebre que serviu para alojar portas velhas, janelas e outros materiais para a obra. Depois, com a ajuda de amigos e pescadores, construiu La Pionera, o seu primeiro atelier em madeira.
Anos mais tarde o uruguaio começou a cobrir a casa com cimento e a modelá-la com as próprias mãos, como se de uma escultura se tratasse. Ao inspirar-se nas linhas dos fornos de pão, na arquitectura do Mediterrâneo e nas formas femininas, o artista plástico evita as linhas rectas e traz-nos à memória as casas esculpidas nas rochas da Capadócia ou as imagens dos postais de Santorini.
Ao longo dos anos, Vilaró foi incrustando objectos que trazia das suas viagens e dizia-se que a casa crescia – com novas cúpulas, corredores e varandas – à medida que era anunciada a chegada de mais amigos para lá passar uma nova temporada. O que, num certo sentido, talvez não fosse mais que um prenúncio da sua actual condição de hotel e museu. No próximo dia 24 de Fevereiro completar-se-ão cinco anos desde a morte de Carlos Páez Vilaró. Onde? Na Casapueblo, “a casa” de Vinicius. Onde ele terá rabiscado e cantado aqueles versos pela primeira vez, para os filhos do seu amigo uruguaio.
O património imobiliário é, sem dúvida alguma, um dos legados mais importantes de um país. Se dúvidas restarem aceda por favor ao Google Images e escreva “Uruguai”. Incrível, não é? Quantos empreendimentos imobiliários, com apenas meio século, se tornaram no símbolo maior de uma nação inteira?
Ainda recorda o endereço? É bem fácil: “Rua dos Bobos / Número zero”…