Entrevistas
17 Maio 2020
Largo Chiado, Rua Nova da Trindade, Rua de São Bento, Largo Trindade Coelho, Rua da Misericórdia, Rua Vítor Cordon, Largo Camões, Avenida Duque de Loulé ou Rua Ivens. Falar nestas direcções é falar no coração da capital e no Chiado em particular. Mas é também falar nas localizações dos empreendimentos que a Coporgest deixou à cidade na última década.
Esta entrevista não aconteceu apenas porque Sérgio Ferreira é fundador e CEO da Coporgest, uma das promotoras imobiliárias que mais contribuiu para a reabilitação do tecido urbano no centro de Lisboa. Esta entrevista aconteceu – mais que por qualquer outro motivo – porque Sérgio Ferreira é, sem sombra de dúvida, das poucas pessoas que diz aquilo que sente e pensa. Sem receios ou hesitações.
José Cabral (J.C.) O Sérgio Ferreira fundou a Coporgest em 2004. O paradigma da promoção imobiliária em Lisboa era marcado, à data, por construção nova na Expo, Telheiras, Lumiar ou Laranjeiras. Viver num edifício de traça pombalina no centro histórico não parecia ser a experiência residencial mais procurada. Quais eram os seus planos nos primeiros anos da Coporgest?
Sérgio Ferreira (S.F.) É verdade que fundei a Coporgest em 2004, embora a actividade tenha arrancado apenas no final de 2005.
Em bom rigor, a minha decisão de fazer promoção imobiliária é arcaica. Tenho memória dela desde criança – já em miúdo, adorava ver prédios em construção e admirava o percurso de alguns empresários do sector que, na sua maioria, correspondiam aquele estereotipo do “pato-bravo” que andava em carros espalhafatosos. Achava essa actividade fascinante.
Em 2004 tinha acabado de vender uma empresa de equipamento médico, tinha liquidez, não me queria reformar aos 40 anos e achei que era chegado o momento de dar esse passo.
Nesse período quis comprar um apartamento para me mudar. Vivia num T2, e queria um apartamento maior, de preferência uma cobertura, com terraços e piscina. Queria viver no centro da cidade, para poupar tempo de vida em deslocações. Não encontrei nada de jeito. Tudo o que vi era mal acabado, mal construído, sem gosto, com materiais horríveis, com isolamento acústico amador. Havia apenas um promotor em Lisboa que se aproximava deste meu conceito, mas mesmo assim fazia coisas muito pirosas.
A missão da Coporgest nasceu nesse momento na minha cabeça. Decidi que queria preencher um espaço que estava vazio no mercado: fazer uma empresa de investimento imobiliário residencial, que faria apartamentos para a classe alta, empreendimentos em zonas centrais, com qualidade de construção muito apurada, utilizando acabamentos nobres, dando atenção aos detalhes. Apartamentos com varandas, terraços, piscinas, halls de entrada nobres e distintos…
Foi com este enquadramento que comecei a olhar para o futuro e a dar corda ao meu instinto. A matriz da empresa ficou definida nesse momento.
J.C. Esse promotor de que fala também era construtor? Creio que seria o modelo de negócio mais comum na altura... E tendo em consideração o período de crise que se viveu entretanto, essa empresa não terá tido que fechar portas nos anos seguintes?
S.F. Sim, esse promotor era também construtor. Ainda é vivo, mas está reformado. Na sequência da crise de 2008 deixou a construção e dedicou-se à hotelaria. Durante muito tempo, foi considerado uma referência em Lisboa. Fazia pequenos projectos residenciais, com uma qualidade muito acima da média do mercado, mas ainda assim num patamar que poderia ter ido muito mais acima.
Comecei por investir 1 milhão de euros de capital próprio, que mais tarde aumentei para o dobro. Hoje temos capitais próprios que rondam os 60 milhões, porque nunca distribuí dividendos. Os primeiros prédios foram comprados com capital próprio ou com suprimentos dos accionistas, e limitei-me a contrair dívida para financiar a construção.
J.C. A primeira construção da Coporgest teve início em 2008. Por essa altura a banca começava a revelar menos disponibilidade para financiar o imobiliário. Acho que nunca vou esquecer este número: de 2010 a 2014 fecharam quase 40.000 empresas do sector. Já para não falar que, no pico da crise – sabendo que a grande parte dos clientes da Coporgest são estrangeiros – Portugal seria, juntamente com a Grécia, um dos lugares menos atractivos para investir. Este sonho de infância não lhe causou sobressaltos nos primeiros anos?
S.F. Não. Nunca demos passos maiores que a perna. Ao contrário daquilo que é habitual nesta indústria, fui desde sempre um fraco consumidor de dívida bancária. Sou professor de Finanças no ISEG há imensos anos, conheço as teorias que enaltecem as virtudes do endividamento, mas sempre achei que a dívida elevada permite crescer rapidamente mas destrói as empresas em momentos de crise. Foi assim em 2008 e será assim em 2020.
Comecei por investir 1 milhão de euros de capital próprio, que mais tarde aumentei para o dobro. Hoje temos capitais próprios que rondam os 60 milhões, porque nunca distribuí dividendos. Os primeiros prédios foram comprados com capital próprio ou com suprimentos dos accionistas, e limitei-me a contrair dívida para financiar a construção. Por outro lado, fiz algumas transacções em que pagávamos os terrenos com a entrega de apartamentos após a construção. Nesse período havia pouca oferta no centro de Lisboa, e o mercado respondeu bem ao nosso posicionamento de liderarmos na qualidade. Foram anos de aprendizagem intensa e nos quais me diverti imenso. Foi só há 12 anos, mas tenho imensas saudades desse período, em que andava a escolher torneiras e sanitas, a estudar sistemas de domótica, a investigar sistemas de isolamento acústico...
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J.C. Quando diz que “o mercado respondeu bem” quase que faz com que pareça fácil. Muitas empresas deixam de existir precisamente porque "o mercado não responde bem" aos produto que elas concebem. Esse acerto vale ouro. Tanto quanto a disciplina financeira. Mas é líder e fundador de uma empresa premiada nacional e internacionalmente. Para isso não bastam um bom estudo de mercado e contas rigorosas. Voltou a colocar-se no papel de estudante? Aos 40 anos decidiu que tinha de saber tudo sobre imobiliário?
S.F. Não tinha outro remédio senão estudar. Fiz uma pós-graduação no ISCTE sobre Imobiliário, consultei intensivamente dados de mercado, investiguei materiais de construção, fui a algumas feiras internacionais, falei com dezenas de pessoas. Alguns diziam que eu não estava bom da cabeça.
Entre 2005 e 2008, enquanto aprovávamos os primeiros projectos na Câmara de Lisboa, aproveitei o tempo para me familiarizar com o sector. Foi nessa altura que tomei os primeiros contactos com o Departamento de Urbanismo da Câmara de Lisboa. Inicialmente, fazia questão de estar em todas as reuniões com a Câmara e fiquei chocado com o que vi – como é possível que uma organização que dispõe de tantos recursos humanos e financeiros seja um excelente exemplo de funcionamento medieval e ineficiente, que destrói anualmente centenas de milhões ao PIB português? Sabe qual é a resposta? A explicação é só uma – a qualidade medíocre dos políticos da nação. Qualquer gestor normal punha aquilo a funcionar em 4 meses, mas há 40 anos que aquilo é uma autêntica tragédia. Fiquei chocado, e continuo chocado hoje em dia. Em 40 anos não apareceu um único vereador com capacidade para organizar aquilo e dar respostas em 90 dias – aprovo ou não aprovo e explico porquê. Ou então preferem a confusão – criar dificuldades para vender facilidades. A verdade é que a classe política tem as prioridades invertidas. Somos administrados por criaturas que geraram défice nas contas públicas durante mais de 40 anos, e nunca ninguém se lembrou que o resultado teria de ser dramático. Vivemos em crise permanente. São umas bestas, com raras e honrosas excepções.
Aliás, os promotores, na sua maioria, são uns pobres duns cobardes, que em vez de imputarem responsabilidades aos técnicos e aos políticos, dizem mal deles nas costas e continuam a ir ao beija-mão. Devo ser o único que apresentou uma queixa crime contra um presidente da câmara, outra contra um director municipal e dois técnicos, e vários processos cíveis contra o município.
J.C. Em Janeiro ouvi o vereador Ricardo Veludo* partilhar que havia processos de licenciamento na Câmara Municipal de Lisboa (CML) que paravam no pipeline de aprovação por causa de notas manuscritas ilegíveis. Entre outras coisas – como a contratação de dezenas de arquitectos em 2019 ou o levantamento de competências de cada funcionário – retive a imagem de alguém a tentar vencer a inércia da estrutura. E duas mensagens essenciais: desmaterialização dos processos e transparência.
De resto foi lançada em Abril a nova Plataforma de Urbanismo Digital e, já esta semana, o vereador fez saber que o processo de licenciamento vai mudar. Pelo que percebi a CML vai confiar mais nos projectos e dinamizar a fiscalização. Em teoria parece ser uma boa notícia para aqueles que cumprem. Acha que podemos estar perante uma dessas pessoas que fazem a diferença?
* tomou posse em Outubro de 2019; herdou os pelouros do Planeamento e do Urbanismo, que haviam estado os últimos 12 anos com Manuel Salgado
S.F. Estou completamente à vontade para lhe responder porque não conheço o vereador Ricardo Veludo, nunca o vi sequer. Conheci o vereador Salgado, com quem estive 2 ou 3 vezes, mas dei o meu tempo por mal empregue e nunca mais o procurei – é uma figura de ar sinistro, carregado de limitações, com tiques de prepotência rasca. Não tenho por ele nenhuma simpatia, embora lhe reconheça conhecimento técnico e capacidade de trabalho. Esse esteve lá 12 anos e também prometeu muito, mas na prática deixou pouco resultado.
Quanto ao actual vereador, as notas manuscritas que ele referiu resolvem-se em 5 minutos e nem mereceriam referência. O recrutamento de 50 técnicos e a desmaterialização dos processos foram iniciativas do vereador Salgado que não tiveram nenhum efeito, foram um zero absoluto. Quanto a essa vontade de escrutinar menos e fiscalizar mais, é uma promessa que já ouvi antes mas que até hoje nunca se concretizou. Em países evoluídos é dessa forma que funciona, e funciona bem. Veremos se é desta e se este vereador tem qualidade e coragem suficientes para implementar essa medida. Por agora, posso apenas dizer que ele já lá está há 6 meses e a nossa experiência é muito negativa – o Departamento de Urbanismo continua um autêntico pandemónio, é uma espécie de caos sem fio condutor e sem liderança. A Coporgest, em concreto, tem projectos em apreciação e sem decisão há ano e meio e temos de andar a pedinchar que façam o trabalho que lhes compete. É uma miséria.
Eu tenho uma visão bem diferente sobre este problema e estou seguro de que não se vai resolver com medidas avulsas. A minha experiência de gestão diz-me que existe défice de organização e de controlo, com excesso de pessoas, excesso de procedimentos, mas acima de tudo parece-me evidente que os funcionários da Câmara se habituaram a uma forma de funcionamento desorganizada e absurda, cumprem procedimentos ridículos e arcaicos que consomem meses e meses sem utilidade nenhuma e que só servem para destruir valor à economia. No Urbanismo da CML, as pessoas regem-se por uma unidade temporal que é o semestre, e a ausência de liderança foi substituída por uma espécie de ditadura dos técnicos. Honestamente, será difícil conceber uma organização que funcione pior. Ganha tanto o técnico que vê 100 processos como o técnico que vê 5. Ganha tanto o técnico que responde em 30 dias como aquele que responde em 300. É uma autêntica pouca vergonha, em que os investidores são tratados sem nenhum respeito. Oiço dizer que há investidores que estão a fugir para o Porto, onde consta que os serviços funcionam menos mal.
Aliás, os promotores têm muita responsabilidade neste estado de coisas porque, na sua maioria, são uns pobres duns cobardes, que em vez de imputarem responsabilidades aos técnicos e aos políticos, dizem mal deles nas costas e continuam a ir ao beija-mão. Devo ser o único que apresentou uma queixa crime contra um presidente da câmara, outra contra um director municipal e dois técnicos, e vários processos cíveis contra o município. Com fracos resultados, diga-se de passagem – apenas com a enorme satisfação de ter cumprido a minha obrigação cívica.
Em suma: se este vereador quiser ficar na história, tem pela frente uma tarefa muito simples: pôr aquilo a responder num máximo de 90 dias, seja para dizer sim, seja para dizer não. Ele que comece por varrer os fundamentalistas palermas que por lá andam e que ainda não perceberam que no século XXI os palácios, para serem preservados, têm de ser adaptados. Seria um grande começo.
J.C. Estava a pensar nestas coisas que refere... a verdade é que promotores e autarquias têm uma responsabilidade enorme na definição daquilo que é a cidade. Um dos projectos mais mediáticos da Coporgest foi o Sottomayor Residências. Sabe o que pensei quando olhei para aquele empreendimento pela primeira vez? Que a Avenida Duque de Loulé não seria mais a mesma. Não lhe estou a perguntar pelo número recorde de fracções ou pelo impacto que aquela obra teve no volume de negócios da empresa. Falo de legado. Não sente que há casos em que a reabilitação física das propriedades tem um impacto brutal na economia local ou na própria auto-estima de uma dada artéria ou bairro?
S.F. Muitos funcionários da câmara olham para os Promotores com desconfiança, como se fossemos agentes implacáveis do capitalismo selvagem, o que não é de estranhar num país em que a maioria das pessoas não gosta do sucesso dos outros, não há uma cultura de mérito e de sucesso. A isto eu respondo sempre que os promotores sérios e credíveis deveriam ser muito acarinhados e tratados como importantes parceiros do município, como agentes indispensáveis ao desenvolvimento da cidade. Se ambas as partes cumprirem as regras, incluindo os prazos legais, essa parceria cria riqueza e melhora o charme e a qualidade da cidade. Pelo contrário, se os promotores são sistematicamente brindados com atrasos, dificuldades e obstáculos, estamos apenas a destruir riqueza, a prejudicar o PIB, a afastar os investidores e a atrasar o desenvolvimento da cidade. Esse empreendimento de que fala, em que me envolvi de corpo e alma, é um excelente exemplo. Transformou uma ruína horrível num empreendimento magnífico, um activo que honra a cidade, e fez virar o aspecto daquela avenida. Mas nem calcula as dificuldades que tivemos de vencer para conseguir pôr a obra a andar…
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J.C. Entretanto, em 2014, a Coporgest começou a dedicar parte dos fogos que concebe à exploração turística através da sua marca Lisbon Best Apartments. Foi uma estratégia de redefinição de produto para ir ao encontro de um dado perfil da procura (estou a pensar nos golden visa), que trouxe consigo outra oportunidade de negócio?
S.F. Nos anos de 2012 e 2013 surgiram-nos algumas oportunidades de adquirir prédios bem localizados no Chiado nos quais, pelas suas dimensões físicas, era impossível fazer estacionamento em cave. Nessa altura já estávamos viciados em produzir apartamentos de boa qualidade para venda, e eu considerava que seria impossível vender apartamentos a preços elevados sem estacionamento próprio. Foi aí que me surgiu a ideia de construir apartamentos que seriam dedicados a exploração turística, porque a maioria dos turistas não traz carro. Note que nessa altura ninguém falava de alojamento local, que se vulgarizou a partir de 2016/2017. Mais uma vez avancei por instinto.
A nossa primeira operação foi com um prédio de 5 apartamentos na Rua Nova da Trindade. Construímos a equipa do zero, fomos adicionando mais apartamentos, fomos alargando a equipa, e assim sucessivamente, até hoje… A ideia de vender produto de rendimento para golden visa surgiu pouco depois, creio que em 2015, quando percebemos que casando as duas coisas teríamos um produto muito competitivo – o cliente comprava o apartamento, nós recuperávamos liquidez e ficávamos com a exploração, oferecendo em troca ao proprietário um rendimento anual simpático. Uma solução win-win, que pouco depois alguns concorrentes seguiram.
Vou abrir o hotel, vou aprender a geri-lo e vou lá jantar muitas vezes. Há vários anos que venho dizendo insistentemente que a Coporgest tem de aprender a gerir hotéis porque acredito que nos próximos anos vão surgir em Lisboa muitas unidades hoteleiras à venda, e quero estar preparado para avaliar se avanço ou não avanço.
J.C. Segue a actividade do Lisbon Best Apartments de tão perto quanto a da Coporgest?
S.F. Sigo sim, com muita atenção e proximidade. Do ponto de vista formal, o Lisbon Best Apartments é uma marca, uma unidade de negócio da Coporgest, mas não tem autonomia jurídica. A equipa é da Coporgest, as facturas são emitidas pela Coporgest, etc. Participo em todas as decisões importantes, como seja definir a política de preços, contratar pessoas, decidir investimentos, etc.. Além disso, faço uma reunião mensal, sagrada, com toda a equipa, desde o Director aos Guest Relations, em que oiço sugestões, queixas, ideias, e na qual fazemos um ponto de situação quanto a taxas de ocupação, nível de preços, queixas e elogios dos hóspedes, grau de cumprimento dos objectivos… Essas reuniões são uma oportunidade de me manter com os pés na realidade e são momentos em que nos inspiramos mutuamente a tomar pequenas-grandes decisões.
J.C. Entretanto, a menos de 50 metros da Rua Nova da Trindade, vai nascer um hotel da mão da Coporgest. Tem-se assistido à entrada de alguns grupos hoteleiros no negócio do alojamento local mas creio que a trajectória inversa é mais atípica. Em que momento pensou dar este passo? Implicará o lançamento de uma nova marca?
S.F. Mais uma vez, foi uma decisão por instinto. Apareceu à venda o prédio que faz esquina para o Largo Rafael Bordalo Pinheiro, aquele que estava revestido a azulejo e completamente descontextualizado da zona histórica. Visitei o prédio, constatei que não daria para fazer estacionamento por baixo mas que tinha características adequadas para fazer um hotel boutique ou alojamento local. Fizemos contas e avançámos. Poucos meses depois a Segurança Social pôs à venda o prédio do lado. Já não me recordo se fomos a única empresa a fazer oferta ou se fizemos a melhor oferta, mas a verdade é que comprámos o prédio. Nesse momento não tive dúvidas de que seria o local perfeito para um hotel de 5 estrelas, juntando os dois imóveis.
A intenção que temos é fazer gestão própria, e registámos o nome de “Lisbon Chiado Hotel”. Surgiram vários investidores interessados em comprar, mas nem quis ouvir ofertas. Vou abrir o hotel, vou aprender a geri-lo e vou lá jantar muitas vezes. Há vários anos que venho dizendo insistentemente que a Coporgest tem de aprender a gerir hotéis porque acredito que nos próximos anos vão surgir em Lisboa muitas unidades hoteleiras à venda, e quero estar preparado para avaliar se avanço ou não avanço.
J.C. Quando diz que “vai aprender a gerir” o hotel ocorre-me imediatamente o entusiasmo com que descreveu os anos iniciais da empresa. Falar no Lisbon Chiado Hotel não é discutir apenas uma nova unidade de negócio para a Coporgest, pois não? Fico com a sensação que – tendo a Lisbon Best Apartments servido para introduzir esta área de actuação – está muito contente com a ideia de ter um mundo novo para explorar.
S.F. Tem toda a razão. Os seres humanos são todos diferentes uns dos outros, cada um é como cada qual e cada cabeça é um mundo. No meu caso, entusiasmo-me muito mais com um bom desafio do que com o dinheiro que prevejo ganhar com ele. Essa é a principal razão que me leva a não retirar dividendos das empresas – vivo bem com o dinheiro que tenho e prefiro deixar o lucro nas empresas para investir em novos projectos. Para mim, pôr este hotel em marcha será um novo desafio, uma aprendizagem a fazer do zero, uma nova fonte de entusiasmo. Vejo-me a aprender imenso sobre hotelaria e quero fazer melhor que os outros. Vejo-me a encontrar uma equipa eficaz que me ajude a concretizar um espaço icónico da cidade. Imagino os clientes a adorarem o espaço e a despedirem-se com “até breve”. Não é para isto que serve a vida profissional?
Chegámos portanto a 2020 empobrecidos, com dívida pública recorde, com a economia a caminho de uma nova crise porque o turismo e o imobiliário não duram para sempre e não dão para tudo.
J.C. Concordo em absoluto. Mas falemos de coisas mais tristes: vivemos momentos que vão ficar gravados nos livros de História. Para além dos danos para a saúde pública, temos uma economia mundial parcialmente paralisada e a mobilidade limitada. Mesmo que os timings da descoberta, aprovação e produção de uma vacina nos surpreendam, o que é que acha que espera os portugueses?
S.F. Tenho de começar por enquadrar esta resposta. A classe política portuguesa inclui certamente algumas pessoas qualificadas, inteligentes, preparadas, íntegras, mas a grande maioria é o oposto disso. Só que infelizmente há algo de comum a todos eles: todos os políticos, sem excepção, têm as prioridades invertidas: primeiro pensam na imagem, na carreira pessoal, nas notícias da imprensa, no partido, nos amigos, alguns nos negócios, nos interesses, e lá no fim da lista surge o interesse público, sempre condicionado por todos os factores anteriores. Só querem tomar decisões que favoreçam as prioridades do topo da lista. Isto faz com que a esmagadora maioria das decisões estejam focadas não no interesse público, mas sim nos interesses pessoais e de grupo. É assim há 40 anos e é por isso que sempre digo que a nação é muito mal administrada. O padrão de 40 anos tem sido a subida constante da despesa pública, dos impostos, e da dívida pública, o que tem provocado subdesenvolvimento e empobrecimento da economia. Podíamos ser um modelo de desenvolvimento, mas somos apenas um modelo de crescimento anémico e de endividamento excessivo.
Tudo isto para chegar a um ponto: estes anos de governo socialista foram uma verdadeira paragem no tempo. A grande reforma que fizeram foi anular as reformas do tempo de Passos Coelho, e o resto foi gerir os interesses e a imprensa, sempre a apregoar que baixaram os impostos quando os números demonstram que a fiscalidade é agora a mais alta de sempre – são mais vorazes que os liberais, mas mais ardilosos: baixaram uns tostões no IRS e aumentaram uns milhões nos impostos indirectos, porque o povo paga e não nota. No fim do dia, a maioria dos portugueses vai sobrevivendo, mas atravessam uma vida inteira sem nunca a conseguirem viver, isto é, vivem sempre no patamar da sobrevivência e quando olham à volta descobrem que há uma minoria a viver com qualidade, e sentem revolta, porque acham que essa minoria é só composta por ladrões. Há corruptos e ladrões, é verdade, mas também há pessoas com sucesso que lutaram muito para o alcançar. Esta é uma realidade que me entristece imenso e que parece condenar Portugal a um destino medíocre que seria desnecessário.
Chegámos portanto a 2020 empobrecidos, com dívida pública recorde, com a economia a caminho de uma nova crise porque o turismo e o imobiliário não duram para sempre e não dão para tudo. Na minha modesta opinião, a crise da Covid-19 é um golpe de misericórdia num país de finanças frágeis e de economia débil. O que nos espera é dantesco: recessão profunda, desemprego rápido, fome, muita miséria, e incapacidade do país de reagir porque não temos reservas financeiras para tal, nem sequer podemos imprimir dinheiro. Estamos à mercê da generosidade dos países que cuidaram do futuro. E como os eleitores desses países entendem que não têm de sustentar o despesismo e a corrupção arcaica dos países do sul, o que nos espera é mais dívida e mais impostos, mais taxinhas, mais contribuições. O que aí vem será muito duro. Já escrevi um dia que deviam mudar o hino nacional para “Heróis do Mar, Pobre Povo…”!
J.C. E a Coporgest? Diria que é nestas alturas que ter 60 milhões de euros de capitais próprios faz toda a diferença. Tanto para fazer face à paragem no sector (imagino que a operação do Lisbon Best Apartments esteja congelada), como para alimentar a expectativa do Sérgio Ferreira em relação ao aparecimento de unidades hoteleiras no mercado para venda...
S.F. No essencial, temos todas as obras a andar, o Lisbon Best Apartments com 0% de ocupação, e as vendas de imobiliário paradas. No entanto, a Coporgest entra neste período de crise com dois aspectos que nos favorecem bastante.
Por um lado, como há 2 anos que eu andava a pregar que nos encaminhávamos para uma nova crise do imobiliário, cessámos os novos investimentos nesse período, o que em termos práticos significa que temos 4 obras a andar mas muito pouco produto para vender. Em mais de 60 apartamentos em produção, creio que temos um total de apenas 12 unidades para venda e ainda um projecto para desenvolver, o Palácio do Patriarcado, que está totalmente financiado por capitais próprios.
Por outro lado, ter uma estrutura financeira robusta ajuda muito a aguentar períodos de crise, não apenas porque não temos problemas de tesouraria e portanto vivemos serenos, mas também porque temos acesso a fundos próprios ou alheios se e quando surgir uma boa oportunidade.
Não vamos fazer nenhuma acção precipitada, seja reduzir a equipa, seja fazer investimentos à primeira oportunidade que aparecer. Temos uns meses pela frente para digerir o trabalho que temos em mãos, observar o que se passa à nossa volta e tomar decisões ponderadas em função do curso dos acontecimentos. Tudo depende da evolução próxima da economia e do sector.